Cada um de vocês deve ter feito experiência daqueles momentos em que gostaríamos de ler, mas não conseguimos, em que nos obstinamos folhando as páginas de um livro, mas ele literalmente cai das mãos.
Nos tratados sobre a vida dos monges, isso era, por excelência, o risco ao qual o monge sucumbia: a acídia, o demônio meridiano, a tentação mais terrível que ameaçava os homines religiosi,manifesta-se, antes de tudo, com a impossibilidade de ler. Gostaria de sugerir-lhes prestar atenção nos seus momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai de suas mãos, pois a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto quanto a leitura, e, talvez, é tão ou mais instrutiva do que esta.
Há uma primeira e mais radical impossibilidade de ler que, até não muitos anos, era extremamente comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito rapidamente esquecidos que há apenas cento e cinquenta anos eram, ao menos na Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do século XX dedicou um livro de poesias ao analfabeto, por quien yo escribo. É importante compreender o sentido desse “para”[1]: não tanto, ou não somente, “para que o analfabeto me leia”, visto que, por definição, não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia testemunhar por aqueles que no jargão de Auschwitz chamavam-se os muçulmanos, isto é, aqueles que não podiam nem teriam podido testemunhar, pois, pouco depois de seu ingresso no campo, tinham perdido toda consciência e toda sensibilidade.
Gostaria que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que, na sua essência, é destinado a olhos que não o podem ler e foi escrito por uma mão que, em certo sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escrevem para o analfabeto tentam escrever aquilo que não pode ser lido, colocam no papel o ilegível. Mas, exatamente por isso, tornam a sua escritura mais interessante do que a que foi escrita somente para quem sabe ler.
Há pois um outro caso de não leitura a respeito do qual gostaria de lhes falar. Refiro-me aos livros que não encontraram aquilo que Benjamin chamava a hora da sua legibilidade, que foram escritos e publicados mas estão – talvez para sempre – à espera de ser lidos. Conheço, e cada um de vocês, penso, poderia nomear alguns, livros que mereciam ser lidos e não o foram, ou foram lidos por muito poucos leitores. Qual é o estatuto desses livros? Penso que, se esses livros eram verdadeiramente bons, não se deve falar de uma espera, mas de uma exigência. Esses livros não esperam, mas exigem ser lidos, mesmo se não o foram e se jamais o serão. A exigência é um conceito muito interessante que não se refere à esfera dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja natureza deixo a cada um de vocês especificar.
Mas agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se ocupam de livros: deixem de olhar para os infames – sim, infames são classificados os livros mais vendidos e, presume-se, mais lidos – e, por sua vez, tentem construir na sua mente uma classificação dos livros que exigem ser lidos. Somente uma editora fundada sobre essa classificação mental poderia fazer sair o livro da crise que – ao menos pelo que ouço dizer e repetir – está atravessando.
[1] N.T.: A partir desse trecho, Agamben joga com o significado de “per”: “para” e “por”. Na tradução, optei por manter sempre o termo “para”, já que o sutil jogo operado em italiano deixa-se ver também em português.
Texto publicado no jornal La Repubblica no dia 08/12/2012 (na página 56). Trata-se de um trecho da intervenção de Agamben numa mesa redonda a respeito do livro Leggere è un rischio, de Alfonso Berardinelli. O debate aconteceu em Roma durante a 11ª Feria Nazionale della Piccola e Media Editoria: Più libri, più liberi. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)