quarta-feira, 18 de junho de 2014

Bienal de São Paulo terá recorte de artistas travestis e transexuais


Giuseppe Campuzano foi convidado do 17o Congresso de Leitura do Brasil (Cole) no ano de 2009.
Com esta reportagem, fazemos nossa homenagem a ele e a todo seu importante e vibrante trabalho de resistência.

Diretoria da ALB - Biênio 2012-2014



Artista peruano Giuseppe Campuzano travestido de Virgem Maria


Quando se vestiu de Virgem Maria numa performance, o artista peruano Giuseppe Campuzano deu cara e corpo ao que entendia como séculos de história que ignorava a existência de identidades sexuais fora dos padrões ditados pela religião católica.

Filósofo e drag queen morto aos 44 no ano passado, Campuzano empresta o rosto maquiado para liderar uma lista de artistas de um dos núcleos mais polêmicos da próxima Bienal de São Paulo, que começa em setembro.
Na mostra que foi anunciada como Bienal da "transgressão", da "transcendência" e da "transexualidade", um extenso recorte de nomes de países como Peru, Chile, Colômbia, México, Espanha, Israel e Brasil compara a profusão de crenças religiosas da atualidade à diluição de fronteiras entre homem e mulher.
"Isso é algo que resume nossa condição contemporânea", diz o britânico Charles Esche, curador da mostra. "A arte nos mostra que essa absoluta dicotomia entre masculino e feminino não reflete a forma como nós, de fato, experimentamos a realidade."

Bienal de São Paulo


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Esse é também um discurso que reflete a última moda na cultura pop, que alçou representantes de uma sexualidade mais ambígua à condição de celebridades e de arautos do que seria quase uma vanguarda plurissexual.
Figuras como a drag queen americana RuPaul, a atriz Laverne Cox (primeira transexual a estampar a capa da "Time") a modelo brasileira Lea T. e a cantora barbada alemã Conchita Wurst estão na linha de frente dessa onda.
E as artes visuais abraçam essa tendência de modos mais ou menos perversos.
No caso da mostra paulistana, exibir agora a produção marginal de latino-americanos que criaram suas obras em contextos de repressão política e social reforça a moda ao mesmo tempo em que revela como essa sempre foi uma questão na cultura.
Nesse ponto, Campuzano construiu ao longo da vida seu "Museu Travesti", uma coleção de objetos que aludem a personagens excluídos da história desde a era colonial até hoje.
"Ele bota abaixo a maneira tradicional de entender uma história escrita por heterossexuais", afirma o peruano Miguel López, curador convidado pela Bienal para pesquisar artistas desse núcleo. "É uma leitura transversal dos fatos a partir de um ponto de vista transexual."
Outro artista já escalado para a Bienal, o também peruano Sergio Zevallos, trabalha no mesmo registro. Ele se veste de Virgem Maria e outras personagens bíblicas diante de lugares associados à manutenção das divisões mais rígidas entre os sexos, como quartéis.
"Eu me transformo e me maquio nesses lugares", diz Zevallos. "São personagens que crio a partir da cultura popular, imagens religiosas e até cenas pornográficas. É um coquetel de referências de sexualidade e religião."
Religião e sexo também se chocam na obra da brasileira Virginia de Medeiros. Seu filme, que estará na Bienal, conta a história real de um travesti que se tornou pastor evangélico depois de uma
experiência traumática.
Medeiros retrata lado a lado as identidades díspares de Simone, travesti, e Sérgio, sua versão masculina. Mas, mesmo quando assume o papel de pregador fanático, o personagem não se livra dos gostos e desejos do travesti.
"É uma crise, um conflito muito grande", diz Medeiros. "O pastor traz sempre a travesti camuflada dentro dele. Isso mostra que não dá mais para trabalhar nesse sistema binário, do macho e da fêmea. Existem várias camadas de masculino e feminino."
Obras como as encenações da Última Ceia feitas em prostíbulos, da dupla chilena Las Yeguas del Apocalípsis, ou as pinturas naïf do mexicano Nahum Zenil, que se retrata nu em paródias de passagens bíblicas, devem entrar na Bienal embalados nesse novo espírito de aceitação.


TOLERÂNCIA MERCANTIL

"Talvez estejamos ainda um pouco cegos sobre o impacto que isso terá", diz a israelense Galit Eilat, também curadora da mostra. "Mas pode ser algo positivo se isso despertar antagonismos."
Nesse ponto, Zevallos alerta para o lado perverso dessa onda. "Há um cruzamento disso com o mercantilismo", afirma o artista. "De repente, percebem que essa parcela da população pode ser um novo mercado consumidor. Surge uma tolerância que abre caminho para a exploração."